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Por Marcelo Costa Soares*
O tema da privacidade, altamente enfatizado ao longo dos últimos anos, mais do que nunca tornou-se de fundamental importância diante do que estamos vivenciando atualmente em âmbito global. Estamos passando por uma situação completamente atípica, ou seja, o exponencial avanço da tecnologia, característica da Quarta Revolução Industrial, se confronta com a pandemia conhecida como Covid-19, que alterou o modo de vida das pessoas ao redor do mundo.
Dito isso, é relevante entendermos primeiramente, antes de fazermos uma análise entre saúde e privacidade, verificarmos como essa última, ao longo da história, tornou-se um tema relevante à humanidade. A noção de privacidade teve sua origem em uma concepção individualista ou, segundo Edward Shils[1], no “relacionamento zero”[2], vale dizer, na ausência de comunicação entre um indivíduo e os demais. Essa percepção inicial evoluiu ao longo do tempo, concretizando-se em torno de uma visão onde a privacidade tornou-se um direito fundamental, ganhando contornos importantes em razão do seu potencial aspecto em revelar identidades, comportamentos, opiniões, hábitos e atitudes podendo expor, condicionar ou induzir os titulares dos dados conforme o interesse de quem os detiver.
Portanto, ao verificarmos a Lei nº 13.709/2018[3] nos questionamos: qual seria o impacto desta pandemia na legislação de proteção de dados acima citada, conhecida como LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)? A resposta não é tão fácil, e necessita de reflexões em relação à algumas questões a serem debatidas.
O momento pelo qual estamos passando deve primeiramente ser entendido como extraordinário, de acordo com a declaração de emergência nacional do Ministério da Saúde que através da Portaria nº 188/2020[4] e tendo como base a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a Covid-19 como pandemia. A classificação de excepcionalidade não significa que tudo será permitido, porém, que algumas exceções em relação às regras e direitos estabelecidos anteriormente precisarão ser revistas temporariamente em nome de um bem maior, a saúde.
Os esforços para utilização de tecnologias capazes de monitorar a população e controlar a disseminação do vírus são legítimos. No entanto, se as medidas de controle não observarem as melhores práticas de proteção de dados, direitos fundamentais poderão sofrer consequências irremediáveis no presente e consequentemente no futuro pós-pandêmico. A coleta de dados, como histórico de saúde, condições financeiras, localização dos enfermos e outras informações diretamente associadas aos indivíduos visando minimizar os efeitos da doença e consequentemente sua proliferação, podem virar uma ameaça a depender de como esses dados serão utilizados posteriormente.
Se por um lado o avanço tecnológico proporcionou o uso de grandes bancos de dados na área da saúde como, por exemplo, a Rede Nacional de Dados em Saúde[5] (RNDS) permitindo que todos os procedimentos utilizados no SUS (Sistema Único de Saúde), fiquem disponíveis na ficha médica do paciente, em um banco de dados online permanentemente atualizado, como também, na utilização de tecnologias integradas para intensificar o acesso a pacientes e melhorar a logística da cadeia de saúde acarretou, por outro lado, que a eficácia na coleta desses dados, seus armazenamentos e tratamentos tenham como prioridade a privacidade do indivíduo.
Lembrando que a manipulação de dados na área da saúde, classificados como dados sensíveis[6], sem a devida eficácia, podem gerar uma onda discriminatória aos portadores do vírus como também aqueles que ainda aguardam o resultado e confirmação dos exames laboratoriais. Vale lembrar consequentemente que a própria Lei 13.709/2018 em seu artigo 11, II, "e" e "f" enfatiza que o tratamento de dados sensíveis poderá ocorrer sem o consentimento do titular quando destinado para a proteção da vida ou da incolumidade física do mesmo e de terceiro ou quando destinado para a tutela da saúde. Entretanto, mesmo na hipótese apenas mencionada, é de vital importância que os titulares dos dados tenham ciência sobre a existência do tratamento dos seus dados sensíveis e o que será feito com eles, bem como onde serão armazenados e quem será o encarregado ou responsável pelos mesmos.
Diante do exposto, vale dizer que os recursos tecnológicos disponíveis atualmente na área da saúde e os que irão ser criados devem ser utilizados tendo como conceito o que se conhece como “Privacy by Design”[7], ou seja, utilizando princípios fundamentais que tenham como objetivo a antecipação de situações que possam ferir a privacidade das pessoas. Portanto, é importante que as autoridades sanitárias antes de adotarem qualquer tipo de tecnologia, busquem aquelas que venham ao encontro do conceito acima citado, tentando sempre manter os mais elevados padrões de proteção de dados e segurança da informação.
Tendo tal conceito como prerrogativa, editais públicos foram abertos ao redor do mundo, buscando contratar startups e pesquisadores com tecnologias e ideias capazes de ajudar no combate ao coronavírus. Um ótimo exemplo vem do Brasil por meio da iniciativa do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que, em 17 de março de 2020, por meio de seu Laboratório de Inovação Tecnológica e de Negócios (MPlabs) juntamente com a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) lançou o “Desafio Covid-19”[8], com o objetivo de atrair startups e pesquisadores com soluções tecnológicas de alto impacto e que possam ser implementadas em curto prazo de tempo para combater a pandemia. Outro exemplo, não menos importante, aconteceu na Itália, através do seu Ministério de Tecnologia, que abriu edital para contratação de tecnologias voltadas à produção de kits para diagnósticos do coronavírus.
Em suma, diante do atual cenário, rápidas soluções são necessárias em âmbito global. No que tange o Brasil, mesmo a LGPD não tendo ainda entrado em vigor, a Constituição brasileira repercute uma tendência mundial e histórica das democracias modernas ao adotar a proteção da vida humana como norte das garantias individuais e direitos fundamentais reforçando o compromisso público de respeito à privacidade levando em conta a proteção de informações que identifiquem os seus indivíduos.
REFERÊNCIAS:
[1] https://www.britannica.com/biography/Edward-Shils Accesso em: 27 de março de 2020;
[2] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582014000100002. Acesso em: 27 de março de 2020;
[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm. Acesso em: 27 de março de 2020;
[4] http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388. Acesso em: 28 de março de 2020;
[5] http://rnds.saude.gov.br/. Acesso em: 28 de março de 2020;
[6] https://www.serpro.gov.br/lgpd/menu/protecao-de-dados/dados-sensiveis-lgpd. Acesso em: 28 de março de 2020;
[7] https://ostec.blog/geral/privacy-by-design. Acesso em: 28 de março de 2020,
[8] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/18/mppe-e-porto-digital-lancam-desafio-para-minimizar-impactos-da-covid-19-premios-somam-r13-milhao.ghtml. Acesso em: 28 de março de 2020.
*Marcelo Costa Soares é advogado, especialista em Compliance pela PUC/SP, membro do Comitê Jurídico da ITALCAM SP (Câmara Ítalo-Brasileira de Comércio, Indústria e Agricultura de São Paulo), membro efetivo da Comissão Especial de Estudos de Compliance junto à OAB/SP, membro do grupo de pesquisa em Direito Penal Econômico e Justiça Penal Internacional da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pós Graduando (Lato Sensu) em Compliance Digital pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Executive Management pela Ohio University, nos EUA, Pós Graduado com MBA Executivo em Marketing pela ESPM/SP, Bacharel em Administração de Empresas e em Relações Internacionais pela American University of Rome, na Itália.
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